Mas a verdade é que não há registro do dia em que nasceu José, que virou Zé Côco, porque desde muito moço era careca. Ainda menino aprendeu o ofício da carpintaria e da fabricação de instrumentos com o pai, e nunca mais parou. A Folia de Reis também nunca saiu de sua vida, desde o primeiro dia até o último, em 13 de setembro de 1998. “Nunca faiei um ano inté os dia de hoje. Nunca faiei e num faio. Eu posso caba com tudo, mas de tocá rebeca na folia eu num cabo, num paro nunca”, falou o tocador na abertura da faixa Homenagem a São Pedro.
O “descobrimento” aos 68 anos
Durante 68 anos, Zé Côco foi “só” tocador e fabricante de viola, rabeca, cavaquinho e sanfona do norte de Minas Gerais, região do Vale do São Francisco, além de compositor. Precisou de várias outras ocupações para sobreviver. Foi sapateiro, ferreiro, fabricou cancelas de engenho, carros-de-boi. Em 1980, sua música se tornaria conhecida em vários cantos do Brasil, depois que o cantador e folclorista Téo Azevedo, também do norte de Minas, gravou uma fita K-7 com a música de Zé Côco e levou para o jornalista e também folclorista Carlos Felipe Horta, que tinha uma coluna semanal no Estado de Minas sobre cultura popular.
“O Téo chegou com a fita e me explicou que ele tocava e fabricava vários instrumentos, que tinha qualidade artística. Era uma fita muito mal gravada, mas eu ouvi”, relembra Carlos Felipe, que acabou dedicando meia página à fita K-7. Como Zé Côco era de Riachão, um lugarejo do município de Brasília de Minas, o jornalista o chamou de Zé Côco do Riachão. O nome pegou e a crítica no jornal também. Dois meses depois, Téo Azevedo conseguiria gravar o primeiro disco daquele matuto que já beirava os setenta anos, no selo Rodeio, um selo da WEA especializado em música sertaneja.
No ano seguinte, José gravou o segundo disco pela WEA. O folclorista conta que o olhar dos pesquisadores se voltou muito mais para o norte de Minas Gerais, após a “descoberta” de Zé Côco. Com o relativo sucesso, o violeiro não mudou nada em seu estilo de tocar. “Ele não era um jovem que pudesse querer criar algo diferente do que já fazia”, opina o jornalista.
Carlos Felipe e o músico se tornaram amigos. Quando ia a Belo Horizonte, o matuto se hospedava na casa do jornalista. Os dois tomavam cachaça juntos, enquanto o violeiro contava seus causos. Carlos conta que Zé Côco era muito gozador e conversava muito, quando estava entre amigos. Em outros ambientes, era “desconfiado, como todo matuto” e se calava.
Nos shows que fez nas capitais do Sudeste, ele não se intimidava. “Ele gostava de ser ouvido”, conta Carlos Felipe. Entre a elite, Zé Côco não gostava de tocar em bares ou restaurantes, onde as pessoas conversavam em vez de escutá-lo. No interior, era diferente. “Ele nasceu festeiro. Para o povo ele tocava onde fosse”.
A desilusão com a carreira e o terceiro LP
Depois dos dois discos gravados, Zé Côco se desiludiu. “Criou-se uma expectativa na região dele de que gravando discos ele ficaria rico. Aos poucos, ele foi percebendo que a música dele não daria dinheiro. A música dele não era para vender muito”, diz Carlos Felipe.
O jornalista José Edward Lima, que produziu o terceiro disco de Zé Côco, Voo das Garças, em 1987, lembra deste momento de desilusão do rabequeiro. “Quando o conheci ele estava desgostoso, porque a música não lhe tinha dado dinheiro”, conta. Naquela época, o violeiro morava em um pequeno barraco, segundo a descrição de José Edward, no mesmo terreno em que a casa de sua filha, no município de Montes Claros, uma cidade-polo do norte de Minas.
Segundo o produtor, Zé Côco ganhava muito pouco dinheiro com direitos autorais e se dedicava somente à fabricação de instrumentos. Em meio à lide como luthier, volta e meia parava para tocar e compor, quando dava na telha. “Ele criava uma música, nunca anotava, lembrava tudo de memória”, conta.
No estúdio, buscou-se dar liberdade ao músico. Ele gravou tudo ao vivo, acompanhado por músicos de sua confiança. “Ele ficava nervoso, mas tocava como se estivesse numa folia. Ficava meio impaciente com aquela história toda de repetir a mesma música”, relembra José Edward. Carlos Felipe Horta afirma que em Voo das Garças é perceptível que a agilidade de Zé Côco como instrumentista era maior. “Ele se aperfeiçoou. Depois, já mais velho começou a ter dificuldade de tocar, faltava agilidade nos dedos”. Sobre a habilidade para tocar viola, José Edward recorda que Zé Côco costumava dizer que havia feito uma simpatia para tocar bem, passando uma cobra-coral entre os dedos. “Isso a gente não sabe se é verdade. Mas ele, de fato, tinha muita agilidade”.
Instrumentos únicos, causos à Guimarães Rosa e influência sobre os novos violeiros
José Edward Lima conviveu bastante com Zé Côco naquela época, porque logo após a gravação do disco escreveu uma pequena biografia do músico. Com uma tiragem pequena, boa parte dos exemplares do livro foi dada para os funcionários da empresa que bancou a obra.
“Era muito amável e muito desconfiado”, conta o jornalista. José Edward ressalta a relação de Zé Côco com a Folia de Reis e sua versatilidade. “O Zé Coco era um artista popular nato, era um multimídia. Ele gostava de dizer que, antes de tudo, era um folião, um participante da Folia de Reis. Ele era gênio. Tocava muito bem, fabricava instrumentos. Era também um exímio contador de causos, como se fosse um personagem de Guimarães Rosa”.
José Edward afirma que os instrumentos feitos pelo matuto eram personalizados, não havia padrão, e muito rebuscados. Ele acredita que se tivesse maior estrutura para produzi-los poderia ter conseguido sucesso profissional como luthier. Carlos Felipe Horta conta que Zé Côco, ao contrário dos luthiers que buscam as melhores madeiras seja onde for, só usava madeiras da região, além de outro dado curioso: ele mesmo fabricava as gomas e as tintas que utilizava, com matéria-prima vegetal.
José Edward lembra de um Zé Côco muito vaidoso, que gostava de dizer que a música lhe ajudava a ter sucesso com as mulheres e que andava sempre de terno e chapéu. “Chapéu para mim é documento”, costumava dizer o violeiro. Analfabeto e sem nunca ter posto os pés na escola, Zé Côco criou uma assinatura com a letra J e um chapeuzinho desenhado, que gostava de usar nos autógrafos e nos instrumentos que fazia.
Carlos Felipe Horta lembra que em um dos últimos shows realizados pelo matuto, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Zé Côco pediu para o amigo ir lendo o roteiro e avisando qual seria a próxima música. O jornalista guarda na memória também que recentemente um encontro com dezenas de violeiros de todo o país, realizado em Belo Horizonte, foi todo dedicado a Zé Côco do Riachão. Cada violeiro tocou pelo menos uma música do mestre e depois todos tocaram juntos Terreiro da Fazenda, do disco Brasil Puro. “Ele e o Tião Carreiro são os inspiradores de todos estes novos violeiros”.
Por Felipe Prestes
Fonte: Sul 21
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